quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Destino Plenitude

   Sonhava o inalcançável e desafiava sua própria lucidez. Com marcas de derrotas pelo corpo, deslizava pela vida como um majestoso lince. Erguia sua cabeça, enchia o peito e gritava ofensas nas mais diversas línguas, sem ao menos saber se estava ofendendo alguém de fato. Riscava destinos dos mapas como uma criança risca a lousa com giz e com o mesmo sorriso inocente colecionava corações. Nenhum deles maiores do que o seu. Amava sem limites, se apaixonava por histórias, experiências, tão intensamente se tornava a própria felicidade nas rotinas alheias e num piscar de olhos, o tempo de um último beijo, fazia da sua presença nada mais do que uma doce lembrança.
   Era atraente mas não sabia disso. Inteligente, mas não se expunha. Envolvente ao ponto de se deixar envolver pelo envolvimento próprio. Escrevia poemas com rimas que não rimavam, cantava músicas sem ritmo nem tom e pintava telas que não tinham significado, apenas expressavam o colorido de sua alma. Com o mais sincero sorriso era notável, diferente, e tão comum quanto qualquer um. Em seus devaneios em topos de montanhas, cachoeiras secretas ou hoteis desprovidos de luxo lembrava de quem um dia havia sido, olhava para o ceu e adormecia sem dificuldades.
   Um dia sua alma juvenil irá cansar, seu riso demonstrará cansaço e seus amores terão outros amores. Nesse dia, irá largar seus pertences, rasgar todos os mapas e não mais rimar sem rimas, cantar sem melodia e pintará sua alma cinza. Será o dia em que vai se sentir tão só, baixará sua dura guarda e ouvirá seus doídos joelhos. Olhará pro ceu com um propósito diferente e dele vai querer uma resposta. Tendo-a ou não, vai sorrir, escuro ceu, e sabendo que alcançou seu mais inesperado sonho, vai brilhar entre as estrelas como um dia brilharam seus olhos.

domingo, 7 de maio de 2017

Avalanche

   Fazia tempo que não se sentia assim. Disse à todos que iria fumar um cigarro, mas saiu pela porta e desde então estava caminhando a esmo. Seus passos eram lentos, curtos, pesados e arrastados. Seus óculos estavam sujos, mas não importava. O frio daquela madrugada de sábado batia contra a jaqueta grossa, mas não era o frio que arrepiava sua pele tatuada. Saiu da festa pois as músicas haviam perdido o sentido, as bebidas perderam o gosto e a companhia perdeu o tesão. No meio de tantas luzes e batidas, se viu diante de um cenário sem sentido, em que tudo que via era tudo que não queria ver. Mais do que depressa, deu a primeira desculpa que lhe veio à cabeça e saiu pela porta.
   Então andou. Sem pressa, sem rumo, simplesmente andou. Viu prédios por ângulos diferentes, carros atingindo velocidades que, durante o dia, não atingiriam e principalmente, viu pessoas. Pessoas das mais diversas formas e tamanhos, culturas e sonoridades. Passou por todas como se fossem mera paisagem. Não sabia para onde estava indo, mas sabia que não queria que lhe perguntassem.
   Não só andou, também pensou. Sobre tudo, sobre todos. Não havia bebido, estava pensando demais. E a cada pensamento seus passos diminuíam. Tirava conclusões, sussurrava nomes, olhava para trás, mas em nenhum momento fez menção de voltar. Perto do rio, se sentou em um banco e chorou. O sol já começava a pincelar o ceu, ainda estava frio e as lágrimas secavam rápido em seu rosto. Gritou algumas vezes de frustração, pegou o celular mas o guardou, não havia bebido nada naquela noite. A vida já estava voltando a acontecer na cidade. A sua, prestes a desmoronar.
   Chegou em casa com mais fome do que sono. A viagem de volta havia sido mais longa, apesar de mais rápida, pois só pensou nela. Ainda estava na cama, os pés descobertos, então fez silêncio. Comeu o sanduíche de peito de peru e salada que ela havia deixado pronto na noite passada junto de um copo de suco de pêssego, tirou a jaqueta e se olhou no espelho. O cabelo comprido lhe incomodava, mas ela gostava. Tirou os óculos e o sutiã por baixo da blusa e, quando ela abriu por completo a porta do quarto ao acordar com um olhar de dúvida no rosto, tudo que pôde dizer foi: "Me perdoa".

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Fonte seca, vazia

   Li a carta mais uma vez pra poder me situar. "Estou fazendo isso pois ainda vejo potencial em você. Me perdoe." Eu não quero perdoar. Tanto tempo juntos e de repente tudo acaba por causa do meu maldito talento desperdiçado? Talento esse que nunca fora reconhecido por alguém que não fosse do meio de convívio, por alguém que não enchesse meu ego por medo de um eventual suicídio, por alguém que sempre disse que me amava querendo algo em troca. E o que queria no final das contas? Eu dei amor, eu dei meu tempo, eu dei tudo de mim e por Deus, até feliz eu fui! Eu me entreguei, mas não fui o suficiente.
   Nas tantas vezes em que me expressei de maneira poética a ponto de mostrar o meu carinho, tua resposta era uma lágrima. Uma única lágrima que brotava tão cruel no olho esquerdo e morria no chão. Eu, iludido, achava que tinha atingido seu coração, quando na verdade, ilusório, massacrava seus ideais de estar com alguém importante o suficiente para transmitir tais palavras para mais de uma pessoa. "Não faça só para mim, faça para o mundo!", você insistia. "Você é meu mundo...", eu dizia. Dormíamos em quartos separados.
   Agora eu tenho duas folhas cheias de justificativas e um final nada feliz. Seguro-as com escárnio, como se tivessem sido escritas pelo próprio diabo. Quem me dirá que não foram? Tantas ideias, tantas imagens, teu rosto se forma na minha mente e uma única frase se repete na minha cabeça: "Minha inspiração se foi". Procuro nas minhas obras algo que não seja relacionado a você, mas tudo, absolutamente tudo é sobre você. Eu sorrio com vergonha de mim mesmo, "Talento é o caralho!" Tanto tempo, tantas obras, tudo a mesma coisa com maneiras diferentes de expressar. Agora eu entendo aquela lágrima. Agora eu choro aquela lágrima. "Pro inferno com a tua sabedoria, meu amor... Te vejo lá"

      
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   Abro a porta e todas as folhas, um dia cheias de arte, estão pintadas de vermelho. A casa cheira à poesia crua, e isso me assusta. Corro para o quarto e me deparo com o corpo no chão. 'Finalmente você teve o seu final poético, não é mesmo?' Coloco "Wouldn't It Be Nice" pra tocar enquanto recolho todas as obras que contém algo sobre mim... É o mínimo que posso fazer.