sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Em obras

   - Esse ônibus vai pro Norte?
   - 'Vai sim senhor.'
   - Obrigado...
   (...)
   - Você sabe que horas são, por gentileza?
   - 'Três e doze.'
   - Ah tá, obrigado de novo (coloca o fone).
   - 'Hm... Interessante, você me pergunta as horas, mas será que tá interessado no real valor do tempo?'
   - (tira o fone)... Como é que é, não entendi?
   -  '... digo, as pessoas hoje em dia estão sempre tão apressadas, eu até entendo, eu estou sempre tão apressado também, mas ninguém tira um segundo sequer pra dizer um olá, pra pedir licença da maneira correta, pra dar lugar pra um idoso, meu bom Deus!'
   -... é, meu senhor, tá complicado mesmo.
   -  'Eu já te peço perdão pelo desabafo, meu jovem, sei que tu só queres ouvir tua música e chegar no teu destino, mas tô com isso preso na minha garganta tem um tempo e, honestamente, acho que tu vais ter que ouvir um pouquinho.'
   - (dando um sorriso MUITO envergonhado) Tem problema não, senhor, pode falar.
   -  'Sabe, recentemente eu perdi minha esposa... (olha pela janela, espera uma frase de empatia que não vem)E desde que ela se foi, eu ando vagando por esses ônibus, conhecendo lugares, pessoas, evitando de pensar, deixando de lembrar. Tentando ao máximo não sentir saudades... '
   -...entendi...
   - 'Que mal lhe pergunte, meu filho, quantos anos você tem?'
   - Eu?
   - 'Uhum.'
   - Vinte e um.
   - 'TÃO JOOOOVEM! (dá uma risada, aperta o ombro do rapaz)... Eu posso te dar um conselho? Só um?'
   - Pode, ué!
   - 'Não sinta saudade.'
   - Não entendi...
   - 'Simples assim: Não sinta saudade! Se você ama, diga. Se você quer, corra atrás. Se ainda estão vivos, abrace, beije, sinta o quanto puder. Só não deixe pra amanhã. E expresse, meu filho. Não tenha medo de expressar. Isso nunca te fará menos alguma coisa, ponha isso na sua cabeça. Tome esse velho aqui como exemplo.'
   - (extremamente interessado, algo raro) O senhor sempre demonstrou?
   - 'Muito pelo contrário! (olha pela janela outra vez, respira fundo, pesadamente) Eu era bruto, violento até. Se hoje tento evitar sentir saudades da minha esposa é porque eu não lembro de ter dito que a amava. E MEU DEUS, como eu a amava. Se apenas eu pudesse dizer isso pra ela hoje... Se apenas eu tivesse dito isso quando tive tempo...'
   - (o ônibus se aproxima do seu ponto, mas ele não parece se importar)
   - 'Eu tenho três filhos e uma filha, mas nenhum deles é próximo de mim. Eu não os culpo (respira fundo, olha para as próprias mãos), fui um péssimo pai. Sinto saudade deles, só queria pedir perdão... Por isso eu rodo nesses ônibus, meu guri! Eu rodo e rodo e rodo pra não lembrar. Eu não quero beber e, felizmente ou infelizmente, não sei, minha memória é muito boa pra minha idade. Por isso eu reforço: NÃO SINTA SAUDADE!... É péssimo (dá um sorriso amarelo).'
   -  Sei nem o que dizer, meu senhor, eu nunca passei por esse tipo de situação, tá ligado? (olha pra fora, vê seu ponto se aproximando, puxa a corda). Mas eu vou levar seu conselho pra minha vida, tiozinho, na moral!
   - '(sorri em concordância, se despede do jovem, segue seu passeio no ônibus)'

   - (recebe mensagem da mãe dizendo "Filho, não consegui colocar crédito, as loja tava tudo fechada. Bj". Começa a gravar um áudio) Pô, coroa, vacilo, hein?! Tem problema, não, tá tranquilo, outra hora eu dou um jeito no bagulho aqui, fica tranquila, sem neurose, sem caô. (ainda com o dedo pressionado no gravar, engole um seco) Mãe... Eu... Eu te amo... Tá ligada não?... Bênção coroa.

   (ele nunca havia dito que a amava antes).

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Vale dos sonhos dentre os prédios dos corações partidos

   Eram dois jovens curiosos, tão jovens e tão curiosos quanto outros tantos daquele singelo parque, mas estavam apaixonados. Estavam à beira do lago Esmeralda, sentindo o cheiro doce das Cirraguilhas-Maçonhas e ouvindo os cantos e prosas de não muitas décadas atrás, tomados pela profundeza do ceu escuro e pela liberdade do feriado em plena terça-feira. Enquanto em seu próprio mundo, os dois jovens viviam de maneira tão ávida e tão intensa que tudo era uma aventura: fossem as pessoas a estender suas longas vestes em tão úmido gramado ou o vento que lhes confidenciava os segredos mais secretos um do outro. Com sorrisos tão discretos e toques tão distintos, a energia aquariana inundava seus puros, mas não inocentes corações.
   Numa decisão silenciosa ambos se levantaram e decidiram sair dali. O ceu estava mais escuro, suas bocas já não sabiam mais qual destino tomar e seus corpos pulsavam de curiosidade. Se pudessem falar, pediriam, em uníssono, para serem explorados, curiosos corpos. Nunca em silêncio, tão jovens que são, saíram à procura de aventuras e o que acharam fez seus olhos brilharem de excitação: um vale de promessas e sonhos, um beco encantado e colorido no meio de todo aquele cinza e escuro do ceu e dos prédios, das pessoas, da tristeza e dos corações partidos. Tão jovens, tão curiosos, tão inocentes, meu Deus, foram logo entrando, sorrisos nos rostos, olhos arregalados, mãos dadas e não era nada. Apenas promessas.
   Saíram de lá menos jovens, menos curiosos e menos inocentes do que entraram. As mãos mais firmes do que antes, só eles sabem o nada que viram, os nadas e tudos que virão. De cabeças erguidas, porém em silêncio, caminharam pesadamente em meio à garoa. De frente ao Morro das Memórias, juraram se amar, então seguiram em meio ao cinza, não mais tão jovens, não mais tão curiosos, mas não menos apaixonados.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Entuamenção

   Por três anos eu consegui fugir. Três anos e eu não me via mais aqui nesse lugar sombrio, frio e vazio. Trinta e seis meses ignorando o fato de que, na verdade, eu nunca saí, estava apenas de olhos fechados. Mil e noventa e seis dias sussurrando à mim mesmo que estava tudo bem, me impedindo de ouvir meus pensamentos. Vinte e seis mil, trezentas e quatro horas andando sem rumo, explorando o nada, falando com ninguém. Esse tempo todo eu estava sozinho, só eu não vi.
   Hoje, agarrado na promessa de um amor e na esperança de um futuro, olho pra frente e insisto em dizer que enxergo sim um novo caminho. Que me vejo sorrindo num porta-retratos, trilhando nossos trajetos e protegendo nossos filhos. Eu quero acreditar. Eu preciso acreditar. Eu preciso de ti. Eu confio nas tuas palavras e me escondo no teu abraço pra não mais sair. Eu te amo e por isso te protejo de mim mesmo.
  

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ombro Defeituoso

   Enrolado nas minhas dúvidas ou cobertas, não há nada que eu possa fazer. Não há passo a ser dado, palavra a ser dita, coração a ser partido. Infelizmente, deitado em posição ridícula, cá estou eu, sufocado em temerária ansiedade, contracenando em peças de puteiros que se passam na minha mente, dirigido por mim mesmo, duramente criticado por quem vos fala. Quebre a perna, filho da puta.
   Em tuas mãos passaram as palavras que me desabilitaram, automaticamente me desconectaram do real, me fizeram perder o nexo da verdade e me transportaram pra esse universo caótico e barulhento de pessoas tão comuns, rostos conhecidos, bocas que querem a sua. Em tua mente eu sou apenas um pobre miserável em todos os aspectos, complexo demais pra ser contemplado, simples demais pra ser jogado fora, mas que, em raros surtos de felicidade e falsa embriaguez, sabe se portar socialmente. Mesmo que tal socialidade seja feita nas molas do teu colchão.
   A grosso modo eu sou o único motivo que te impede de achar a verdadeira felicidade, o êxtase momentâneo, a curiosidade do momento, o prazer da descoberta e, enquanto isso me soca a garganta dia após dia, tua alma insiste em me repetir. Teu corpo resulta por me querer. Teu coração se encontra com o meu. Minha barra só se completa na tua presença.
   Preocupado, envergonhado, ainda na mesma posição desconcertante, fecho os olhos e te vejo naquele mundo. Você está olhando pra mim, distante de tudo e de todos. Tua mão está estendida, teu corpo inclinado, e eu me pergunto se tu queres que eu entre ou que eu te tire.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Pêndulo

   Exausto não é a palavra certa, mas é a primeira que me vem à mente.
  
   Será, meu Deus, depois de todo esse tempo, que eu não consigo parar deitado num chão gramado, sujo até, olhar pra cima, pro ceu, pras estrelas, não sei, e agradecer? Eu te respondo com dura certeza: não, e te digo o motivo.

   Mal agradecido não é a expressão correta, mas é a única que me vem à mente.

   Eis o motivo das minhas unhas roídas, dos meus dentes quebrados e língua mordida. Contemplem, caros e caras, a razão da minha angústia. Tão igual, tão próximo, sangue do meu sangue. Me sufoca com a fumaça diária do seu olhar e me mata, lentamente, com sua voz. A bênção, eu lhe peço.

   Bastardo não é a palavra certa... Mas bem que eu gostaria.

   Em verdade e em verdade vos digo, digníssimos: todos e cada um de nós cai na própria mentira. Em verdade e em mentira eu vos digo, que se foda. Minha mentira é genial e me chama de "meu homem".

   Amor não é a palavra certa, mas é o sentimento.

   Tentado diariamente a dar um fim em tudo isso, alucinado em sobriedade, tortura preta e branca, o gosto tão insosso de uma vida que não passa, de um relógio que não gira, a vontade insaciável de escrever e transpassar e transmitir a solidão.

   Tristeza não é palavra certa.
   Mas é a única.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Vida (ou tristeza com vestido maltrapilho)

   Quem sabe uma vida não seja o suficiente pra mudar minha tão insistente inércia. Uma morte tentou, mas não obteve sucesso. Hoje me vejo nos braços de um amor proibido, cercado por ameaças invisíveis, porém audíveis, preso em celas de cipó e grade creme, tentado a mudar tudo radicalmente, algo que ainda hei de me acostumar, pra poder dormir com ambos os olhos fechados.
   Pingando de minhas mãos estão as lágrimas de meus familiares, concentradas no único lugar em que puderam achar desconforto e solidão, a tradução mais sincera do choro: meu frio espírito. Acaricio a todos e cada um com toques despretensiosos e involuntários, toques de quem não quer, toques de quem não vai. Ali e agora não. Os olhos, tão verdes, tão azuis, tão abertos e esbugalhados, julgam meus pretos, escuros, fechados e sonolentos olhos. Olhar cansado, só meu, direcionado para um futuro promissor já apagado pela certeza da derrota.
   Enquanto calo no caos e cuspo no luto, minha já manjada tontura causa incerteza nos teus passos, medo em tuas palavras e raiva na minha cabeça. Deus, seu brincalhão, se isso é um teste, deixa o motivo do meu riso fora disso. DEUS, seu sapeca, eu não tô te ouvindo! Feliz contigo, miserável sem ti. Leia nas entrelinhas, tava tudo no contrato.
   Mais um dia, mais uma pessoa a ser desprezada nesse local sujo. Palavras e palavras que juntas, olha só, estão formando um desabafo reprimido, tão sincero quanto a raiva que o tempo tem de nós. Dois anos se passaram e pouco mudou. Os sonhos pioraram. A tristeza ainda é a mesma. O ódio e o amor confundem-se agradavelmente. Mentira... Mentira.