quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

O Teste

  Duas e vinte e sete da manhã. Anette ainda não havia tocado na comida. Levantou-se da poltrona, guardou a comida em um pote de plástico e a colocou na geladeira velha. Desligou as luzes da cozinha e da sala e checou mais uma vez se a porta da frente estava trancada. Estava. Sushi, a gata branca de sua mãe, dormia silenciosamente no segundo degrau da escada de madeira. Anette cuidou para não pisar no rabo de Sushi, então foi para o seu quarto. Geralmente ela entrava lá bêbada de sono, mas o vinho branco já havia acabado e ela esqueceu de comprar mais na mercearia local. Bebia para poder usar a embriaguez como desculpa por não ter produzido nada em seu TCC. Ana Arlette Lindenberg, ou só Anette, como gostava de ser chamada, estava cursando o último ano de arquitetura e urbanismo e decidiu utilizar a casa de campo dos pais, localizada no interior de uma cidade extremamente pequena e silenciosa, para se concentrar na execução do teste mais importante da sua faculdade. Hoje já fazia um mês que ela havia se mudado pra lá, e um total de duas páginas haviam sido totalmente feitas. Anette olhou para as folhas esparramadas na mesa na lateral da sua cama, mostrou a língua para as mesmas e se jogou na cama.
   Quatro e quarenta e oito da manhã, o despertador tocou alto demais para a dor de cabeça de Anette, que notou que seu celular havia atrasado três minutos dessa vez. Levantou, deu bom dia para Sushi, que estava deitada no tapete ao lado da cama, e foi tomar seu banho. O anticoncepcional que sua mãe havia indicado já tinha acabado há seis dias, mas como não havia notado nada de diferente em si mesma, resolveu comprar hoje mesmo, só pra ter no estoque. Isso e muito vinho. Desceu, deu ração para a gata, que agora estava deitada em cima do balcão da cozinha, ligou as luzes da varanda e saiu para sua caminhada matinal. Voltou para casa depois do meio-dia, no meio do caminho decidiu ir fazer compras a pé mesmo. A mercearia ficava muito longe pra ir andando, mas como o que ela mais tinha era tempo e, curiosamente, disposição nessa manhã, foi caminhando mesmo. Não beber na noite passada acabou fazendo bem pra ela. Chegou em casa suada e com fome, mas a primeira coisa que percebeu ao abrir o portão do pátio foi que a porta da frente estava aberta. Ela lembrava que tinha ligado as luzes da varanda e dado ração para Sushi, mas não de ter trancado a casa, embora ela sempre o fizesse. A fome e a intranquilidade que de repente bateu nela fizeram sua cabeça doer, então ela decidiu dar a volta na casa e entrar pela porta dos fundos. Tirou os tênis e entrou na ponta dos pés, fazendo o mínimo de barulho possível. Olhou com os olhos semicerrados para todos os cantos que pôde, e não viu quando Sushi passou correndo entre suas pernas. Com o susto, derrubou as sacolas das mãos, quebrando todas as garrafas de vinho. Tapou a própria boca com as mãos e se escondeu atrás da porta da lavanderia, último cômodo antes da porta de trás.
   Não sabia se tinha algo ou alguém dentro da casa, mas se tinha uma certeza nessa vida era de que Sushi era preguiçosa demais para simplesmente sair correndo daquela maneira sem algo ter acontecido. Quando teve coragem de sair da lavanderia, ouviu passos pesados vindos da escada. Tirou a mão da maçaneta e correu para trás da máquina de lavar roupas. Sentiu a nuca arrepiar e o estômago embrulhar. Estava com medo demais até para chorar. Tentou controlar a respiração para poder ouvir melhor, então percebeu que não tinha apenas uma pessoa na casa. Ouvia vozes e passos demais, ficou mais perplexa do que amedrontada, então se levantou. Quis sair e pegar um facão e gritar para saírem de sua casa e perguntar o que fizeram com a gata de sua mãe, mas não conseguiu nem estender a mão para a maçaneta. Recuou quando ouviu os passos pisando no vidro das garrafas de vinho que derrubou na entrada da porta de trás, a poucos passos de onde estava. As vozes silenciaram, os passos pararam e a maçaneta se mexeu delicadamente, como se alguém estivesse com a mão nela, mas ainda não quisesse abrir. Anette deixou o corpo reto, os olhos arregalados, e esperou que a porta abrisse. Mas isso não aconteceu. Pouco a pouco os pés começaram a ir embora. Dez minutos depois, ainda na mesma posição, ela tomou coragem e saiu da lavanderia. Sushi estava sentada no balcão da cozinha, lambendo as patas vagarosamente. Ela fez carinho na gata e a pegou no colo, trancou as portas da frente e dos fundos e subiu até seu quarto. As folhas do seu TCC estavam espalhadas pelo quarto, apenas uma permanecia na mesa. Colocou a gata na cama e leu o recado que estava escrito na folha branca. "Você precisa terminar seu TCC, Arlette... Já faz um mês!". Espantada, pegou a folha e olhou para Sushi, que não estava mais na cama. Virou-se para a porta e viu seu professor e orientador, sr. Marquez, a única pessoa que a chamava de Arlette, segurando a gata em seu colo enquanto todo o corpo docente de sua faculdade a olhava pela porta. Anette estendeu as mãos para pegar Sushi de volta, lágrimas escorriam de seus olhos, ela balbuciava para ele por favor soltá-la, a gata ronronava. Sr. Marquez estendeu os braços com Sushi em suas mãos, e quando foi entregá-la para Arlette, quebrou o pescoço da gata, fazendo-a soltar um último miado desesperado.
   Anette acordou num pulo. Olhou para todos os lados e encontrou uma Sushi assustada no tapete ao lado da cama. Já era dia alto, ela não ouviu seu celular despertar. Fez carinho na gata branca de sua mãe, sentou-se na cadeira ao lado da mesa e olhou para o seu TCC. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo todo, mas decidiu não protelar mais. Aquela merda ainda a faria perder a lucidez.

O Teste

  Duas e vinte e sete da manhã. Anette ainda não havia tocado na comida. Levantou-se da poltrona, guardou a comida em um pote de plástico e a colocou na geladeira velha. Desligou as luzes da cozinha e da sala e checou mais uma vez se a porta da frente estava trancada. Estava. Sushi, a gata branca de sua mãe, dormia silenciosamente no segundo degrau da escada de madeira. Anette cuidou para não pisar no rabo de Sushi, então foi para o seu quarto. Geralmente ela entrava lá bêbada de sono, mas o vinho branco já havia acabado e ela esqueceu de comprar mais na mercearia local. Bebia para poder usar a embriaguez como desculpa por não ter produzido nada em seu TCC. Ana Arlette Lindenberg, ou só Anette, como gostava de ser chamada, estava cursando o último ano de arquitetura e urbanismo e decidiu utilizar a casa de campo dos pais, localizada no interior de uma cidade extremamente pequena e silenciosa, para se concentrar na execução do teste mais importante da sua faculdade. Hoje já fazia um mês que ela havia se mudado pra lá, e um total de duas páginas haviam sido totalmente feitas. Anette olhou para as folhas esparramadas na mesa na lateral da sua cama, mostrou a língua para as mesmas e se jogou na cama.
   Quatro e quarenta e oito da manhã, o despertador tocou alto demais para a dor de cabeça de Anette, que notou que seu celular havia atrasado três minutos dessa vez. Levantou, deu bom dia para Sushi, que estava deitada no tapete ao lado da cama, e foi tomar seu banho. O anticoncepcional que sua mãe havia indicado já tinha acabado há seis dias, mas como não havia notado nada de diferente em si mesma, resolveu comprar hoje mesmo, só pra ter no estoque. Isso e muito vinho. Desceu, deu ração para a gata, que agora estava deitada em cima do balcão da cozinha, ligou as luzes da varanda e saiu para sua caminhada matinal. Voltou para casa depois do meio-dia, no meio do caminho decidiu ir fazer compras a pé mesmo. A mercearia ficava muito longe pra ir andando, mas como o que ela mais tinha era tempo e, curiosamente, disposição nessa manhã, foi caminhando mesmo. Não beber na noite passada acabou fazendo bem pra ela. Chegou em casa suada e com fome, mas a primeira coisa que percebeu ao abrir o portão do pátio foi que a porta da frente estava aberta. Ela lembrava que tinha ligado as luzes da varanda e dado ração para Sushi, mas não de ter trancado a casa, embora ela sempre o fizesse. A fome e a intranquilidade que de repente bateu nela fizeram sua cabeça doer, então ela decidiu dar a volta na casa e entrar pela porta dos fundos. Tirou os tênis e entrou na ponta dos pés, fazendo o mínimo de barulho possível. Olhou com os olhos semicerrados para todos os cantos que pôde, e não viu quando Sushi passou correndo entre suas pernas. Com o susto, derrubou as sacolas das mãos, quebrando todas as garrafas de vinho. Tapou a própria boca com as mãos e se escondeu atrás da porta da lavanderia, último cômodo antes da porta de trás.
   Não sabia se tinha algo ou alguém dentro da casa, mas se tinha uma certeza nessa vida era de que Sushi era preguiçosa demais para simplesmente sair correndo daquela maneira sem algo ter acontecido. Quando teve coragem de sair da lavanderia, ouviu passos pesados vindos da escada. Tirou a mão da maçaneta e correu para trás da máquina de lavar roupas. Sentiu a nuca arrepiar e o estômago embrulhar. Estava com medo demais até para chorar. Tentou controlar a respiração para poder ouvir melhor, então percebeu que não tinha apenas uma pessoa na casa. Ouvia vozes e passos demais, ficou mais perplexa do que amedrontada, então se levantou. Quis sair e pegar um facão e gritar para saírem de sua casa e perguntar o que fizeram com a gata de sua mãe, mas não conseguiu nem estender a mão para a maçaneta. Recuou quando ouviu os passos pisando no vidro das garrafas de vinho que derrubou na entrada da porta de trás, a poucos passos de onde estava. As vozes silenciaram, os passos pararam e a maçaneta se mexeu delicadamente, como se alguém estivesse com a mão nela, mas ainda não quisesse abrir. Anette deixou o corpo reto, os olhos arregalados, e esperou que a porta abrisse. Mas isso não aconteceu. Pouco a pouco os pés começaram a ir embora. Dez minutos depois, ainda na mesma posição, ela tomou coragem e saiu da lavanderia. Sushi estava sentada no balcão da cozinha, lambendo as patas vagarosamente. Ela fez carinho na gata e a pegou no colo, trancou as portas da frente e dos fundos e subiu até seu quarto. As folhas do seu TCC estavam espalhadas pelo quarto, apenas uma permanecia na mesa. Colocou a gata na cama e leu o recado que estava escrito na folha branca. "Você precisa terminar seu TCC, Arlette... Já faz um mês!". Espantada, pegou a folha e olhou para Sushi, que não estava mais na cama. Virou-se para a porta e viu seu professor e orientador, sr. Marquez, a única pessoa que a chamava de Arlette, segurando a gata em seu colo enquanto todo o corpo docente de sua faculdade a olhava pela porta. Anette estendeu as mãos para pegar Sushi de volta, lágrimas escorriam de seus olhos, ela balbuciava para ele por favor soltá-la, a gata ronronava. Sr. Marquez estendeu os braços com Sushi em suas mãos, e quando foi entregá-la para Arlette, quebrou o pescoço da gata, fazendo-a soltar um último miado desesperado.
   Anette acordou num pulo. Olhou para todos os lados e encontrou uma Sushi assustada no tapete ao lado da cama. Já era dia alto, ela não ouviu seu celular despertar. Fez carinho na gata branca de sua mãe, sentou-se na cadeira ao lado da mesa e olhou para o seu TCC. Sentiu um arrepio percorrer seu corpo todo, mas decidiu não protelar mais. Aquela merda ainda a faria perder a lucidez.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

1+1+1=2

   Desceu as escadas com pressa. Chave na mão, casaco fechado e lágrimas nos olhos. Passou pelas pessoas sem dar atenção, correu até seu carro e não quis saber de respeitar o limite de velocidade do estacionamento do condomínio. Foda-se se iriam lhe dar multa, só queria sair de lá. Tomou a esquerda e ao passar por um buraco pôs-se a chorar. Soluçava, gemia, mas não parava de acelerar. Ignorava as cores dos sinaleiros e as buzinas, apenas aumentava a velocidade e enxugava as lágrimas que lhe embaçavam a visão. Era julho, o frio estava no seu ápice, mas a pressa e o choro ininterrupto faziam sua testa suar.
   Dentro de poucos minutos o choro passou e o terror tomara conta de seu corpo. Suas mãos tremiam, as pernas estavam bambas, a cabeça latejava demais. Zigue-zagueava pelas ruas com um destino em mente, nas não queria chegar lá. A chuva então começou a cair, forte, pesada, mas seu limpador de parabrisa não funcionava há meses. Enxergava muito pouco, quase nada, o que fez com que perdesse a entrada à esquerda. Pisou ainda mais forte no acelerador, fazendo o carro roncar alto demais pela ausência de troca da marcha. Não conhecia aquele caminho, mas desde que havia saído de sua cama não sabia mais qual caminho tomar.
   Já haviam se passado duas horas desde que havia saído de sua casa. Estava de frente a um viaduto. Farois desligados, motor desativado, apenas o som da tempestade no vidro traseiro do carro e a voz pouco emblemática de Gwineth Paltrow embalavam seu devaneio mental. Olhava pro nada pensando em tudo, as lágrimas já haviam secado, mas a dor da sua certeza  demoraria uma vida inteira pra passar. Quando acordou, algumas horas mais tarde, a chuva já havia cessado, bem como sua vontade de fugir. Ligou o carro, aumentou o volume do rádio até sua capacidade máxima e voltou para casa cantando em histeria. Sua direção era calma, mas seu estado emocional nem um pouco. Entrou no portão nos primeiros raios do sol, guardou seu veículo, subiu as escadas, abriu a porta e decidiu de uma vez por todas encarar sua realidade.
   Em sua cama haviam ainda duas pessoas. Uma ele amava, a outra não mais. Estavam em sono profundo, dormindo a uma certa distância, então se encaixou no meio para refletir sobre sua decisão. Começou a sussurrar sua mais nova verdade, então a falar, quase gritar, o que fez despertar os dois lados da cama. Recebeu olhares de sono e confusão, então se pôs de pé e explicou o que havia feito na noite passada. O cansaço tomava conta, seu corpo estava implorando por descanso, mas precisava dizer aquilo ali e naquele momento. Quando terminou de falar, saiu do quarto e deixou a vida decidir o que aconteceria dali pra frente. Sentou-se no sofá da sala, tirou o casaco e se pôs a esperar com as mãos no rosto. Pouco tempo depois um vulto passou pela sala e saiu pela porta sem se despedir. Ergueu a cabeça, mas não quis olhar pela janela pra ver quem havia saído. Tirou os tênis e a calça, respirou fundo e voltou para o quarto. Na sua cama seu amor ainda estava com lágrimas nos olhos, mas de braços abertos, cicatrizes expostas, com disposição pra perdoar e seguir em frente, como sempre fizeram. Entendeu que poderia ser feliz assim, sorriu discretamente, abriu seus braços e sentou-se na beirada da cama. Olhou pra trás e com muita confiança soltou seu mais exausto "Eu te amo". Pela primeira vez naquele colchão, mentiu.